sexta-feira, 26 de novembro de 2010

muito distante da fé


Quando ainda não tinha sequer seis anos, nem sonhava onde era o largo! Sabia que ficava lá para as bandas da igreja grande, no centro da vila que eu olhava irrequieto, sentado no poial da minha porta, a três passos de Nossa Senhora da Esperança.
O meu largo era outro! Tinha duas ruas de calçada bonita, divididas por um jardim decadente. No meio havia um tanque redondo, onde imaginávamos as touradas a preto e branco com o Mestre Batista. No lado de lá da rua, o primo Candeias já tinha fechado a taberna e resumia a sua simpatia tolerante ao apertado balcão da mercearia. A arca dos gelados “Dá-Cá” quase tirava o campo todo à freguesia! Mais adiante, ainda novo, afectuoso e trabalhador, o Humberto crescia no negócio e segurava a tradição: de um lado a mercearia e no outro a venda onde os homens como o meu pai degustavam “jarrinhas” de vinho para fazer cair a noite.
Eu morava em frente. Aí as manhãs libertavam-se com os papo-secos muito moles, vendidos a 15 tostões na casa do vizinho Zé Páscoa. E seguiam para diante, desaguando dentro de um carro preto, eternamente estacionado em frente ao portão do ti’Amílcar, que nos abria as portas para fazermos as viagens imaginárias da nossa infância. Lembro-me desse carro e escuto uma crónica de Fernando Alves na TSF, narrando as viagens de “Chico Papo d’homem”. Por que haveria tanta a gente a fazer viagens apenas fantasiadas? Será que ainda há?
Naquele meu “largo” de meados de Setenta, corríamos para dentro da casa grande do senhor Zico. Não deixarei apagar da minha memória o sorriso tão gentil e a franqueza tão permanente e tão boa da sua mulher, dona Maria Bárbara. Era ela que me vendia o leite numa pequena bilha de latão, naquela grande cozinha rural, onde recordo uma fila de muitas canecas alinhadas e com desenhos diferentes: cada uma tinha um nome; cada nome era de um neto da dona Maria Bárbara.
Sempre tive a tentação de descobrir o interior daquela casa tão nobre. Nunca consegui. Imaginava-lhe lá dentro, algures, uma biblioteca cheia de livros, com revistas e publicações desse e de outros tempos. As Selecções do Reader’s Digest, um almanaque alentejano!
A minha vida por ali escorria pelo grande quintal, pelos palheiros, nas vacarias e na horta onde, quando a Primavera aquecia, dávamos banhos nuns tanques quadrados que ficavam junto às duas noras rodeadas de figueiras, que hoje estão decadentes. Comíamos cenouras que arrancávamos da terra, rebentávamos os lábios com os figos por amadurecer, fumávamos cigarros “mata-ratos” que… vá lá, “desviávamos” debaixo do colchão improvisado do ti’Zé Correia, que guardava religiosamente aqueles macinhos de Kentucky para fumar a semana inteira. Pelo meio, imaginávamos que as vacas grandes, pretas e brancas, estavam por nossa conta quando segurávamos nos bordões do Tonico e do Manuel Rosária.
Em cada Primavera, as tardes começavam a alargar-se dentro dos nossos olhos. Mal a dona Amália nos abria a porta para partirmos pela rua abaixo, tomávamos conta do tempo.
Em Maio, a menina Umbelina abria as portas da nossa igreja para rezarmos o terço todos os dias. Irmã da dona Maria Bárbara e casada com o ti’Amílcar, a menina Umbelina transporta consigo uma eterna delicadeza. Afectuosa, sempre amável e muito bonita, hoje, talvez com 90 anos, continua a ser um farol de bondade.
Era ela que todas as tardes de Maio, às seis horas, rezava o terço com palavras entoadas, sempre certas e recortadas, abrindo o caminho para a nossa única fé: o último dia de terço, a 31, quando as orações emprestavam o campo aos bolinhos e aos pastéis! E havia jarros com aqueles gulosos refrescos de groselha “Alsa”, preparados a preceito para a festa final das preces.
Impaciente, tantos anos à espera do último dia de Maio, aprendi a rezar! Os terços da Primavera já madura, foram a minha apressada catequese infantil. Básica e elementar. Mas muito distante da fé!

"claro que ando aborrecido"



Não há nada mais detestável que a burrice e a falta de memória. Por estes dias, os jornais têm feito do treinador do Benfica um verdadeiro mártir: sim… são os mesmos jornais que fizeram dele um herói nacional!
Claro que Jorge Jesus fez tudo para se pôr a jeito, com aquela arrogância imprópria (para o ser é preciso saber, como Mourinho!); as declarações deslocadas e fora de tempo (“vamos ser campeões europeus!”); a sobranceria perfeitamente dispensável (“eu conheço os jogadores todos da América do Sul”); as opções absurdas (como no jogo com o FC Porto); a incapacidade de gerir casos muito particulares do balneário, como Nuno Gomes e, especialmente, David Luíz (parece que quer ir ganhar muito dinheiro! É legítimo mas, se for verdade, escusava de ser cínico!)
Tudo somado não é pouco, mas Jesus continua (ainda) a ser um bom treinador à frente de uma boa equipa. Este é o mesmo Jesus que ganhou o último campeonato numa corrida imparável, com jogos fantásticos, goleadas, estádios cheios para ver a bola e muito divertimento. Ainda se lembram? Foi há muito pouco tempo.
Portanto, recuso-me a acreditar que, em apenas seis meses, com um Roberto a mais e um Di Maria a menos, o Benfica tenha perdido a identidade, o talento e a capacidade para encantar. Acho a ideia deslocada, a não ser que esteja a ver muito mal a coisa! (e até admito que sim, que o Benfica às vezes tolda-me o raciocínio)
Mas o que eu vejo são capas de jornais mais sérias (aquele título de “A Bola”, quinta-feira, é delicioso: “Não podem ou não querem?”) e muitas notícias tão oportunistas e insensatas que não têm ponta por onde se pegue. Mas uma coisa é certa: “ando aborrecido, claro que ando aborrecido!”

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

saúde e sorte, camarada!


Soube esta tarde: Paulo Barriga vai ser o novo director do "Diário do Alentejo". Fico feliz. Somos amigos, da mesma geração, sempre contei com ele em todos os projectos da minha vida: incluindo o "Diário do Alentejo", onde colaborou sempre enquanto fui director! Desejo-lhe felicidade e sei que o seu talento ajudará o principal jornal da região a ser outro. Já lhe disse para ter a coragem que não tive, para que faça a necessária reforma da redacção. Espero que consiga ter da administração uma carta de confiança para fazer o que é preciso. Para fazer, no fundo, aquilo que consiga tirar o "DA" do desespero. Sei que será muito complicado e exigente. Apoiá-lo-ei, mesmo sendo da concorrência!

Saúde e sorte, camarada!

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

apenas criança


Eu acho que ter um filho é uma coisa rara. Íntima e notável. Peço desculpa! Tenho a mania de escrever na primeira pessoa do plural mas, neste caso, sou obrigado a usar o pronome no singular. Porquê? A gente tem sempre um ridículo pudor em falar dos nossos filhos, dos seus alegres disparates, da necessidade de serem crianças e fazerem as mil asneiras a que têm direito.
Não sei se já reflectiram sobre isto, mas todos arranjamos formas de encontrar desculpas para dizer que temos os filhos perfeitos. Eu às vezes gostava de dizer que o meu filho não diz o que devia ser segredo, tem conversas com os meus amigos como se fosse um adulto muito maduro, tem ideias claras e objectivas sobre a profissão que quer ter um dia, está sossegado no restaurante como se estivesse a beber saborosas imperiais. E fica sempre sentado à mesa a discutir aqueles assuntos oportunos sobre os quais não faz a mínima ideia.
Por exemplo, o meu filho às vezes fala muito alto, revela “segredos” que deviam ser só nossos, refila com a sopa, com a necessidade de estudar e de arrumar o que desarrumou. No fundo, como li há poucos dias num jornal, ele quer é pegar na Play Station, descobrir na Internet as mais bonitas chuteiras da Nike, ir para o campo da bola com os amigos, divertir-se com os primos ou andar no campo, a ver de longe as cabras com o tio.
Mas a balança tem (quase) sempre dois pratos! Se lhe pedimos para estudar: cumpre. Se lhe exigimos boas notas: tem. Se lhe decretamos bom comportamento: acolhe… embora haja alturas que resvala para a necessidade de chamar a nossa atenção. Quer continuar a estar no centro do mundo que lhe criámos!
Às vezes, não raras vezes, tenho dificuldade em adequar ao meu filho de 10 anos a equação que sintetiza a brincadeira e a responsabilidade. Mas ponho os pés na terra e fico com o peito cheio quando lhe entendo a identidade e o carácter que se resumem em tão escassa vida. Fico feliz por ele ser como é! E o que é que ele é? Criança. Apenas criança.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

o voo improvável


Era um dia igual aos outros. Talvez não. Havia no ar a leve brisa das manhãs felizes. O “astro” beijava a terra escancarada, espreguiçado pelo horizonte infinito. Os homens rasgavam com vigor o colo das sementeiras. Havia pássaros. Alguns perigosos. Outros apenas elegantes e bailarinos. Que fazer com este tempo? Talvez parar, talvez sentir. Que tal experimentar um novo voo? É este o problema das manhãs felizes. Sempre sorridentes e a engordar a expectativa. Sempre capazes de criar uma paixão, descobrir um desejo, inventar um final feliz. Adeus! Não quero ser peregrino dos desejos inúteis. Prefiro voar no céu infinito. Sozinho.

texto meu publicado no livro de fotografias "Momentos ao Natural" de Dinis Cortes - edição do Instituto Politécnico de Beja (2007)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

os olhos do Silva


Na minha vila só há um portista a sério. Chama-se Álvaro mas a gente sempre lhe chamou Silva. E para muitos, desde tenra idade, o filho do ti’Manel da Quinta continua a ser o Silvinha.
Antigamente, era jogador do Entradense e chegou a mudar-se um ano para Castro. Mas voltou logo. Era bom jogador, mas o seu mano mais velho era muito melhor. O Silva cumpria, naquele seu estilo laborioso e directo, sempre a resmungar com a bola e os companheiros. É uma pessoa franca. Às vezes, seja sobre bola ou sobre outra coisa da vida, exalta-se muito e dispara em todos os sentidos. Depois, num ápice gracioso, abre os olhos e sorri, voltando ao olhar franco que lhe espelha o coração.
Uma vez, há muitos anos, éramos quatro sentados à mesa do “Central”. Nem sei que conversa era aquela, que cresceu ao ritmo das imperiais e do desassossego de um café quase novo. Sei que em certa altura, no meio de uma teima, o Silva carregou o sobrolho e disparou exasperado para o Tomé, naquele estilo inconfundível: “Sabe o que é a vida? Sabe o que é vida?” – Surpreendido, com falta de tempo e campo para engatilhar uma resposta, o outro mal teve tempo para respirar. “Não sabe, não sabe… então acabou-se a conversa!”
Só quem conhece o homem percebe a intensidade dramática do momento. Está zangado? Sente-se incompreendido? Não, é apenas um jeito muito franco e repentino de insurgir-se e marcar posição. E depois, quase solenemente, escancara o coração e solta lá de dentro a gargalhada franca que sempre lhe conheci.
Gostava de o ter visto ontem à noite, quando o Porto manjou e se deliciou com o Benfica. Como se o relvado fosse uma toalha estendida, onde foi servido um petisco muito saboroso. E gostava de lhe ter visto os olhos a sorrir, desfrutando da nossa desgraça e das mil formas que inventámos para explicar uma tão grande incompetência.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

uma tarde infinita


São três da tarde e o calor infernal de Agosto mal deixa fazer sombras na calçada da rua larga. Vigilante, a torre da igreja assoma-se austera para quem arrisque espreitar os jardins velhos. As amoreiras já deram todas as amoras às mãos dos moços da vila inteira. O jogo da falha acabou com a Primavera e a taberna do ti’Elisiário tem as portas fechadas. Daí a seis horas, há-de ser posta uma mesa com vinho e petisco no passeio, ao fresco, para que a noite seja gozada depois de um dia inteiro de ceifa e suor.
Espreito pela fresta quase invisível da persiana branca. Gosto daquela persiana incrustada na parede, sem lata por cima para acolher o rolo quando a gente a sobe ao fim da tarde. Sempre achei que o meu pai foi arrojado ao escolher persianas assim!
Pelo buraco ténue, não vejo os homens. Por que tardarão tanto? Fujo pelo corredor de mosaicos que eu acho muito modernos e ligo um telefonia com cheiro a alemanha que a minha tia me trouxe pelo São Pedro, quando chegou para as férias com os meus primos preferidos. A telefonia mal se ouve. Tento fixá-la no “fm estéreo” mas o trabalho é impossível. Não desisto e sigo o caminho da onda média: “A corrida segue num ritmo lento, quase sufocado pelo calor que aperta Portugal. Lá à frente, subindo a serra e bebendo o doce sabor do descuido do pelotão, Zeferino corre muito adiantado. Serão mais de nove minutos!...”
Escuto o relato afogado em emoções que não consigo distinguir. Mas abro muito os olhos, admirado com tanto descuido do pelotão autoritário, sempre tão mandão e decisor.
Volto a fugir pelo corredor até à porta da rua. São duas portas, muito bem envernizadas e bonitas. Gosto tanto daquelas portas. Porque são duas e fogem à nova mania de fazer uma porta única. Inteiriça, rectangular e sempre solitária. Pelo menos aquelas duas sempre se aconchegam e confidenciam segredos uma com a outra, na sua eterna vigilância.
Abrir a porta… para já não pode ser. Está calor, o Verão obriga a honrar um código de resistência e aconchego à sombra dos forros a direito com tábuas muito bem pintadas. Volto a espreitar a persiana e, finalmente, vejo os homens ali, sentados no banco onde todos os dias contam tantas histórias e segredos. Ensaio um sorriso.
Solto pelo corredor um grito de liberdade: “Os vizinhos já estão no banco. Posso ir ali ouvir a Volta?” Recebo o assentimento com tanta alegria que mal sei andar na rua quando atravesso a calçada.
Digo “boa tarde” com uma voz grossa que me orgulha. Coisa de criança alentejana com pretensão a imitar os homens que admira. Pergunto como se não soubesse: “Atão, como é que está a volta?” O mais velho assoma-se por cima do cajado, mas não consegue ter precisão para dar a resposta certa. Um dos manos encolhe os ombros no meio do olhar terno, guardando para o barbeiro a resposta de todos os dias: “Ainda isto vai no princípio e já anda aí um gajo novo a querer pedir meças.”
Na ponta do banco, tão comprido e improvisado, o pequeno rádio solta a voz composta do locutor. Seria o Marques Vidal? A todo o momento, a emissão “é interrompida” para uma “ligação directa à estrada” e à terrível “frigideira alentejana”. Dentro do nosso silêncio, o homem mais velho conta uma história sobre aquele dia distante em que viu os ciclistas passarem ao lado da vila. Eu, com as palmas das mãos apoiadas no banco, por baixo das pernas e metidas para dentro, só sei sorrir com os olhos, desejando que a corrida demore a tarde toda…

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

um limbo inacreditável


No final da década de Oitenta, alguns sonhadores fizeram nascer a Rádio Castrense. Durante os anos de Noventa, uma equipa jovem, irrequieta, desejosa de descobrir e saber fazer, ergueu o emissor a um ponto que mereceu admiração, graças a um trabalho incansável e apaixonado. Era o tempo em que o estilo dos discos pedidos e dos programas populares se ligava bem com a seriedade das notícias, a coragem do debate público e um abraço permanente à tradição e à nossa terra.
Atrás dos tempos vêm tempos! Alguns seguiram novos desafios e outros quiseram renovados rumos. Muitos dos que ergueram a Rádio Castrense a um lugar de referência, abalaram repentina e gradualmente, escapando da sua própria alma. E hoje há ali um vazio incompreensível e doloroso!
Castro Verde e o Campo Branco têm falta de uma Rádio Castrense que renasça. Criativa e mais sólida. Com uma definição concreta do seu rumo e do seu papel. Sem medos e sem preconceitos. Refundada num projecto que seja criativo, competente e corajoso nos conteúdos, mas seja na mesma proporção muito rigoroso e eficaz no plano da administração. E muito dinâmico na área comercial, com força para criar e reinventar!
Isto é claro para quem observa de fora o percurso da Rádio Castrense. Não é possível querer fazer crer que a rádio não pode ser mais do que é hoje e que, se o for, corre o risco de se desmoronar. Nada mais errado! E as provas estão à vista de todos: foi a partir desta ideia redutora e deslocada que se resvalou para um limbo inacreditável, que tem vindo a ceifar a rádio vagarosamente. Deixando-a sem alma e desabitada, vivendo de instantes e de uma saudade que nos embala para uma dor profunda e amarga.