sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

camaradas

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

o homem que juntou os fios



Muitos chamam-lhe o “pai da rádio” e têm toda a razão. José Tomé dos Anjos tinha 34 anos quando o António Pereira começou a propor-lhe que fizessem uma rádio em Castro Verde. “Ele foi sempre o mais inquieto com esta ideia”, conta Tomé, que lembra o facto de nada ter sido planeado – “Foi tudo espontâneo”, assegura.
Passados 15 anos a Rádio Castrense está implantada no terreno. Cresceu, afirmou-se e nada é comparável a esses tempos de um velho gira discos e um microfone, no sótão da residência do José Tomé. Ele próprio, mais maduro e mais velho, quase a completar meio século de vida.
Tudo começou quando o jovem técnico se ofereceu para construir um emissor artesanal. António Pereira comprou as peças em Lisboa e não demorou muito que o equipamento improvisado estivesse pronto a emitir. “A primeira coisa que fizemos foi tentar perceber se as pessoas de Castro queriam ter uma rádio”, afirma José Tomé.
Assim se explica o apelo feito em directo, pela voz do “surpreendido” Joaquim Rosa, que leu o curto comunicado a mobilizar mais interessados no projecto.
No dia seguinte, o sótão encheu-se! A maior parte dos que apareceram deram corpo à CORTIÇOL alguns meses depois. E ficaram até hoje. José Tomé confessa que sempre pensou que aquilo “era uma brincadeira” mas a verdade é que, uma semana depois, percebeu que não era bem assim: “Não demorou muito tempo para o ICP – Instituto das Comunicações de Portugal vir bater-me à porta, a pedir responsabilidades”, lembra.
Seja como for, Tomé está convencido que quem impulsionou verdadeiramente a rádio foram as pessoas de Castro Verde. “Agarraram muito bem a ideia e acarinharam-na com toda a sua força. A rádio tornou-se uma coisa muito querida para os castrenses”, afirma.
Tanto que o primeiro emissor “a sério” foi comprado com o dinheiro de muitos apoios concedidos pela população. Daí para cá a história não parou! A nova telefonia mudou do sótão para a oficina do Tomé e da oficina para os antigos estaleiros da obra do Bairro da Coophecave, entretanto adaptados para o efeito.
A rádio era um corrupio de gente! Jovens com “braçadas” de discos e a cabeça a fervilhar para imitar os ídolos da Comercial. Menos jovens a lerem notícias recortadas dos jornais. Programas de debate, discos pedidos e os primeiros passos do “Património” marcavam uma grelha com duração entre as seis da tarde e a meia-noite.
Até que Cavaco Silva quis pôr em ordem as rádios piratas e mandou parar todas as emissões na véspera de Natal de 1988. A Rádio Castrense organizou nesse dia uma grande emissão ao vivo, na Escola Secundária de Castro Verde. “À meia-noite fui eu que anunciei o fecho e custou-me muito. Lembro-me que chorei”, confidencia José Tomé
Foi exactamente nessa emissão que, numa entrevista conduzida por José Francisco Colaço Guerreiro e Constantino Piçarra, o presidente da Câmara de Castro Verde, Fernando Caeiros, “comprometeu-se a criar novas instalações para a rádio”, caso fosse legalizada.
Foi essa a etapa seguinte. Naquela altura, “muitos disseram que seria impossível”. “Perante as exigências, eu e o Carlos Peres fomos os que lutámos mais para que a rádio avançasse para a legalização. Tivemos mais garra e convencemos os outros”, conta.
José Tomé encarregou-se de entregar o projecto em Lisboa e lembra-se que faltava pouco para o fim do prazo quando ainda estava com um cunhado, na Rank Xerox, a fotocopiar o documento.
“Foi uma alentejana que trabalhava nos serviços que nos ajudou a entregar o dossier”, lembra Tomé, sem esquecer “algumas rivalidades entre rádios” que se viviam nesse período.
“A Rádio Imagem (Serpa) e a Rádio Lagoa estavam muito implantadas e tinham muita aceitação. Curiosamente tratavam-nos com sobranceria e subestimavam-nos. A verdade é que não conseguiram legalizar-se”, observa.
A notícia da legalização chegou cedo, ainda antes do Verão. Tomé admite que consideraram natural e relembra que essa luz verde “trouxe atrás uma série de coisas que obrigou a rádio a fazer um empréstimo bancário por leasing no valor de milhares de contos”.
“Era preciso para comprar o equipamento que constava no projecto de legalização”, explica.
Tomé não dúvida que toda a equipa directiva da CORTIÇOL, proprietária da rádio, “ganhou confiança” a partir desse momento e, até hoje, “o projecto cresceu como uma bola de neve”. Perante uma realidade tão diferente, aquele que é o responsável técnico da estação não tem preconceitos em afirmar que a Castrense “ainda não desempenha o papel que esperava”, embora vinque que aceita e gosta daquilo que se faz.
No fundo, o que José Tomé defende é uma rádio “mais ligada às coisas de Castro”, seja as pessoas, as instituições ou as actividades económicas.
“Sem prejuízo da direcção global que hoje tem, penso que deveria ter uma componente mais virada para as coisas do concelho”, acentua, defendendo a emissão de um retrato “mais aturado da vida real e das dificuldades”, em detrimento de tanta atenção dada a determinadas matérias.
Director da área técnica da rádio, José Tomé julga que este sector “está à altura de corresponder às exigências actuais”, mas reconhece que talvez fosse importante reforçar a potência da emissão, “para fazê-la chegar com muito mais qualidade a casa das pessoas”.
Este projecto está dependente do ICP, que recentemente deu luz verde ao surgimento de novas estações em Ourique, Aljustrel e Mértola. Uma nova realidade que não preocupa o “criador” da Rádio Castrense. “A única forma de reagir é fazer melhor e ir ao encontro das pessoas com qualidade. Temos alguma vantagem porque já cá estamos, criámos o nosso espaço e esse é um percurso que os outros terão que fazer”, refere.
 
Janeiro 2002

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

mestre zé adelino


Tinha 14 anos e o pai quis que fosse barbeiro. A ajudar à sina, o seu tio Álvaro Freire fez gosto em ensinar-lhe o ofício. Assim foi! José Adelino perdeu os tempos da mocidade em troca de uma profissão para o resto da vida. Com uma bata muito branca, depressa aprendeu as artes do cortar o cabelo e a barba. Um dia, prestes a partir, o tio chamou-o ao leito da doença e pediu-lhe para que ficasse dono da barbearia. Não houve maneira de dizer não!
Estavam em 1937 e havia ecos das bombas de Espanha. Os tempos eram muito diferentes em Castro Verde e em todo o lado. Barba e cabelo custavam 18 tostões e a cadeira não chegava para tantos fregueses. “Trabalhava das sete da manhã à meia-noite. Sempre sem parar. Sempre com gente à espera”.
O tempo era um caminho estreito. Os ordenados fracos e o trabalho escasso. Salazar crescia no poder e dava força a uma ditadura implacável, obrigando o povo a viver numa terrível miséria.
Quando o mestre Zé Adelino decidiu aumentar o valor do trabalho para dois escudos (hoje um cêntimo!), os protestos emergiram sem piedade – “Não tem consciência nenhuma”, praguejavam entre dentes os clientes da vila inteira.
Em 1956, com quase 20 anos de ofício, a barbearia mudou para outro ponto da Rua Nova, mesmo ao lado da papelaria do Galrito, perto do Nicola e a dois passos da praça maior. O negócio continuava a ser remediado, apesar da concorrência. A mulher do Zé Adelino chegava a lavar 100 toalhas por semana, para ele dar uso na barbearia. Era tanta a clientela que, nesse tempo, Castro tinha nove barbearias de portas abertas.
Passaram-se os anos. Para ajudar à arte do corte e de escanhoar, o barbeiro começou a ajeitar-se com os relógios. Sem fregueses nas cadeiras, sentava-se na pequena mesa encostada à estreita janela virada para a grande loja do tio Albano. A perspicácia ajudava-o a anunciar pequenos e sucessivos milagres. Mas um dia, por causa dos olhos cansados, os médicos proibiram-no de concertar as misteriosas máquinas do tempo.
A mesa dos relógios passou a ser um tabuleiro para eternos jogos de sueca, com os mesmos velhos de sempre, enredados entre calendários de mulheres com mamas generosas e edições intermináveis do “Correio da Manhã”. Gente de Castro, contadora de histórias e feitos e mágoas. Até de segredos!
Nisso da conversa, o mestre Zé Adelino era um criador notável. Sempre a soltar uma frase afiada para lembrar um episódio ou um feito. Sempre pronto para resgatar da sua imaginação as frescas pinturas que ninguém mais havia visto.
Com a barbearia e a vida em contra-relógio, Zé Adelino lamentava com nostalgia a distância dos dias completos. Esse tempo em que os jovens “ainda não usavam o cabelo grande para imitar as mulheres” e a moda das gillettes não tinha chegado a casa de ninguém.
Inconformado e sem a ilusão dos relógios, mesmo perto dos 80, o mestre ainda se divertia como alquimista de surpreendentes “mésinhas” com ervas do campo. Ficou célebre a que preparou para a dor dos dentes. Um milagre inventado que sabia negociar com habilidade prodigiosa: “Deu três anos de trabalho e de estudo. Não imagina como é eficaz! Quer levar?”, desafiava com aquele olhar maroto e franco.
Nesse tempo em que acabou o século, na rua que sobe houve muitos que começaram a descer para a eternidade. O mestre Zé Adelino também abalou um dia! E a barbearia da minha infância fechou as portas para sempre.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

que fazer com as palavras?


As crónicas do Vítor Encarnação são crónicas belas e simples, porque são genuínas e falam de coisas que tocamos e que nos tocam todos os dias. São crónicas cristalinas e transparentes e às vezes muito doces, porque descrevem o que pensamos e não sabemos dizer, ou não queremos porque não temos coragem. São palavras bordadas, às vezes com frágeis linhas da renda maternal, outras vezes com a dolorosa marca do ferro em brasa, mas quase sempre com a mesma leveza da água límpida que nos inunda os olhos. E são terrivelmente inquietantes, e raras, porque não falam das coisas comuns dos telejornais nem dos lugares mil vezes repisados pelas bocas gastas de quem se repete sem ouvir o eco dos seus próprios verbos. São apenas palavras profundas, que rimam com tempo, memória e vida, e se entrelaçam num voo pensado, riscando o céu num frágil e gracioso bailado, que imita os pássaros da Primavera quando se soltam pelos telhados e brincam livres nos mais altos ramos de laranjeiras prenhas com bolas de intenso fogo, que se esmagam contra o infinito céu azul onde todas os vocábulos se abrigam.
Aquelas expressões sabem seguir o caminho recurvado das vidas, esculpir os dias tristes de chuva e massajar a lembrança dilacerada por uma perda irrevogável. São doces porque não vilipendiam a carne e sabem glorificar o amor, quando é verdadeiro e elementar e se traduz numa madrugada de luzes riscadas na noite leve e escura e misteriosa.
As palavras do Vítor Encarnação são frágeis quando edificam homens abandonados e distantes do lugar que prometeram imaginar. Ou quando nos transmitem, com desassossego, que cada tempo desses homens consumidos pela voragem das letras calejadas, será também uma cronologia nossa, porque o grande relógio universal, incomensurável e frio, vai deixar-nos em apeadeiros onde nunca sonhámos estar. E esse é o ferro em brasa que nos fere a carne e nos desvenda com estranha limpidez o lugar onde não queremos chegar.
E tudo isto é inquietante e raro, porque é na sucessão de linhas, harmoniosamente aconchegadas, que afinal descobrimos a nossa história e identificamos os lugares da ingenuidade e do sonho, do amor e da alma, da saudade e do destino. E do tempo… de todo o tempo que molda a nossa vida, às vezes sem percebermos que a existência é apenas um risco desenhado na areia, que num instante se apaga sem sequer deixar um leve murmúrio.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

"nogueiras" de Portugal


Um estudo que avalia o desempenho escolar de jovens de 15 anos em 65 países (PISA - Programme for International Student Assessment) concluiu que os estudantes portugueses, afinal, não estão tão mal quanto isso. O referido estudo mostra que, na apertada esfera dos 33 países da OCDE, Portugal foi quem mais evoluiu na leitura, matemática e ciências. E faz notar que estes resultados só foram alcançados graças às políticas adoptadas desde 2005, altura em que Maria de Lurdes Rodrigues assumiu a pasta da Educação no primeiro Governo de José Sócrates.
Neste período não se fez pouco! Entre muitas outras coisas, a data de arranque do ano lectivo e a colocação de professores deixaram de ser anedóticos. Surgiram as aulas de Inglês em todas as escolas a partir do 1º ano. Foi distribuído um milhão de computadores a alunos e professores. Foram criadas condições para que as escolas, ao contrário do que acontecia, tenham extensão de horário com diferentes actividades até às cinco e meia da tarde. Há aulas de substituição, refeições adequadas e obrigatoriedade no ensino até aos 18 anos (12º ano). E a oferta formativa fortaleceu-se bastante na área profissional.
Perante tudo isto, Sócrates fraquejou diante do valor meramente eleitoral da política: dispensou Maria de Lurdes Rodrigues, para indisfarçável contentamento do Sindicato de Professores e do seu dirigente emblemático, Mário Nogueira
Com sarcasmo, Nogueira já desvalorizou este estudo e os seus resultados, preferindo enterrar a cabeça na areia das suas inacabáveis reivindicações. Afinal, quanto vale uma entidade internacional e independente certificar o bom trabalho da antiga ministra? O que verdadeiramente importa, para os “nogueiras” deste pobre país, é a agenda político-partidária do sindicato e a imensa fileira de interesses corporativos que preferem continuar a defender.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

antónio dos anjos



Esta é a história de um homem que se confunde com a história do seu clube de sempre. António dos Anjos, 71 anos, deu os primeiros passos como dirigente em 1953, ano da fundação do FC Castrense (Castro Verde).
Com apenas 14 anos e “muita falta de jeito para jogar à bola”, decidiu dar o seu contributo de outra forma, apoiando informalmente a secção de ciclismo que, a par do futebol, completava o curto portefólio de modalidades do novel emblema alentejano.
Apaixonado pelo Sporting, António não perdia pitada dos relatos na rádio. Seguia os feitos dos “cinco violinos” e tinha no hóquei em patins outra paixão, cimentada por ídolos como Correia dos Santos, Jesus Correia e Emídio Pinto. “Jogávamos hóquei nas ruas da vila quando não havia movimento. Fazíamos umas balizas e arranjávamos uns sticks com paus de palmeira”, recorda.
O jovem António esperou pacientemente pelos 18 anos e entrou nos corpos sociais do Castrense. Ao mesmo tempo, ajudava José Ricardo, o treinador que também foi um dos fundadores do clube. Numa terra a perder população, empobrecida e muito dependente dos grandes lavradores, o Castrense brilhava como podia. Primeiro em jogos informais e, depois, nos campeonatos organizados pelo INATEL e pela Associação de Futebol de Beja, sempre em escalões secundários.
Só a Revolução de Abril criou outros horizontes ao emblema alentejano. Como sempre, António dos Anjos esteve na primeira linha. Com o início da construção do primeiro rinque de Castro Verde, o então presidente da assembleia-geral imaginou que seria possível criar a sonhada secção de hóquei em patins. A forte influência de alguns colegas de trabalho fez o resto. “Eu tinha vários contactos com colegas que estavam na Associação de Patinagem e no Desportivo de Beja. Eles começaram a insistir comigo e eu achei que era possível”, conta.
O hóquei chegou formalmente a Castro Verde em Fevereiro de 1980. Um subsídio de 150 contos [750 euros] da Câmara Municipal ajudou a adquirir sticks, bolas e equipamentos. Quatro patins foram comprados e outros quatro emprestados pela Associação de Patinagem do Alentejo.
“Foi a partir daí que organizámos melhor as coisas. Angariámos fundos e formámos uma célebre equipa que fez bons campeonatos nos diversos escalões, competindo com Benfica e Sporting em meados dos anos 80. Até tivemos um internacional júnior”, lembra com orgulho.
Actualmente, o hóquei do “verde e negro” disputa o campeonato da 3ª divisão nacional. E tem uma equipa de jovens que parece assegurar a continuidade da secção. Essa é a confiança de António dos Anjos, pilar da modalidade em Castro Verde e dirigente histórico em todo o Alentejo. Um estatuto que já lhe garantiu a condição de sócio honorário da Federação Portuguesa de Patinagem.
Mas este currículo recheado nunca o divorciou do futebol. Aliás, quando recorda a primeira promoção do FC Castrense à 3ª divisão nacional, em 1993, o decano dos dirigentes desportivos do Baixo Alentejo não esconde uma suave emoção para lembrar que “foi um ano histórico para a vida dos castrenses”. “Especialmente para nós, que estávamos integrados nesse grupo, foi a maior alegria que tivemos”, confessa.

 Publicado no "Diário de Notícias (Novembro de 2007)

domingo, 12 de dezembro de 2010

belmiro isidro caeiros


 
Depois da segunda grande Guerra Mundial, o país e a vila de Entradas enveredam por uma nova realidade. Os apertos provocados pela tragédia desaparecem e, mesmo com uma incontornável miséria, nota-se um novo alento, sobretudo a nível local, onde os 20 anos seguintes, de 1945 a 1965, são de notável desenvolvimento e modernização da localidade.
Este período é marcado pela afirmação da actividade da Casa do Povo mas, sobretudo, pela acção da Junta de Freguesia e de um homem que inevitavelmente está ligado a muito do que foi feito na vila nesta época. Esse homem é o professor Belmiro Isidro Caeiros.
Com formação católica e muito ligado à Igreja, Belmiro Caeiros nasceu em São Teotónio, no concelho de Odemira, e vem para Entradas como docente do ensino oficial. Na juventude frequentou o Seminário e durante a vida nunca perdeu o hábito de ir à missa todos os domingos.
Em Entradas nunca esteve ligado à Sociedade Recreativa Entradense e fazia ali breves aparições apenas para ler o jornal, mostrando-se até algo antagónico a este tipo de movimento associativo. Na óptica de Fernando Caeiros, seu filho e antigo presidente da Câmara de Castro Verde, isto deve-se em parte ao facto de julgar que estas actividades têm “um carácter excessivamente pagão e quase sempre conotado com o republicanismo”. Embora em Entradas o quadro não seja esse, o professor de São Teotónio, que por razões essencialmente de formação é “muito adverso a coisas autónomas e de livre confraternização”, vê na Sociedade “um movimento não controlado”.
Homem inteligente, culto, bem formado, salazarista convicto que, segundo Fernando Sales de Brito Palma, “compreendia bem o que era o salazarismo e acreditava no regime corporativista”, torna-se muito influente em Entradas, por via da profissão, mas também devido à sua evidente dinâmica e capacidade empreendedora.
Para muitos entradenses, a sua figura está indelevelmente associada à de alguém com um papel importantíssimo, tanto na vertente autárquica como na de professor, área onde alguns alunos o classificam como “competente e dedicado”.
Na voz do povo, Belmiro Caeiros é “um homem muito metido em todas as coisas” e, no entender do relojoeiro António Espírito Santo, tem “muito jeito para apaparicar os governantes”. É indesmentível, por exemplo, a sua influência junto de Bento Caldas, que durante muitos anos exerceu em Beja as funções de delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP).
Por causa deste perfil, o professor chega à presidência da Junta de Freguesia em Novembro de 1945 e aí se mantém até Junho de 1974, já depois da Revolução dos Cravos.
Pelo meio, lidera uma vasta obra que transfigura por completo a povoação e fica marcada pelo calcetamento de todas as ruas, electrificação da vila e construção dos jardins da avenida de Nossa Senhora da Esperança e do edifício da Casa do Povo.
Estas intervenções, de um modo geral, tiveram a particularidade de modernizar mas, ao mesmo tempo, dar resposta às sucessivas crises que se apoderam dos trabalhadores rurais. Em muitas ocasiões, o avanço de obras de calcetamento acontece por administração directa da própria Junta, visando dar resposta à falta de trabalho que afecta muitas famílias. Isto começa por suceder no início dos anos 40, com os calcetamentos das ruas de Santa Bárbara e do Paço, e do Largo [hoje rua] do Arrabalde e, é importante frisá-lo, porque reforça esta argumentação, estas obras chegam a parar por altura das ceifas, quando há trabalho alternativo, sendo retomadas depois de concluída esta tarefa nos campos. (…)
[Com o 25 de Abril de 1974] Desalojado do poder que exerceu com respeitável eficácia e desenvoltura, dando a Entradas um ritmo de modernização e progresso incontestável, Belmiro Isidro Caeiros compreende até certo ponto o desfecho do regime.
“Para ele não foi a queda da ideologia mas sim a corrupção que corroeu o regime. A ideologia mantinha-se intacta”, considera Fernando Sales de Brito Palma.
Belmiro Caeiros, com 59 anos, continuou a sua vida em Entradas. Respeitado, escutado e até venerado! (…) Morreu aos 67 anos, no dia 5 de Junho de 1982. A vila homenageia a sua obra e imenso trabalho em prol do bem comum transformando a Rua da Palha na Rua Belmiro Isidro Caeiros.
Hoje é recordado pelas qualidades de professor, apesar dos métodos da época, e pela invulgaridade da sua intervenção enquanto autarca, com um currículo vasto e incontornável em qualquer levantamento histórico que se faça sobre esta freguesia.
 
Extracto do livro "Entradas - A Sociedade e a Vila" (2005)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

as sopas do monte coito



Quando eu era pequenino, o Luís Fernando passeava-me numa Sachs V5 que já não me lembro a cor. Eu queria apenas andar, ser livre e ir descobrir a vila. Ele, talvez à espera de ser homem maduro, calcorreava a avenida, para baixo e para cima, até a mulher da sua vida espreitar na janela numa casa por cima da fábrica para onde se mudaram há pouco tempo.
Naquela altura, registo aquela harmonia que ele tinha com todas as crianças. Mas eu, orgulhoso, assumia um egoísmo infantil e queria-o apenas meu amigo. Antes de virar de 70 para 80, mudou-se para uma casa ao lado da minha quando ainda esperava pela chegada da Sofia. Dava passos na lavoura, em sementeiras eternas e debulhas feitas de uma camaradagem que nunca mais consegui distinguir noutros pontos.
O Sebastião do monte do Ulmo chegava cedo num Toyota Corolla encarnado esmorecido. Coisa que resolveu quando decidiu pintá-lo de novo! À porta do casão, o mano do Chico Brissos já estava pronto para pegar na corajosa Laverda que iria rasgar as searas torradas, cor de ouro, nas encostas suaves do Monte Coito. O novo Ebro azul-escuro, arrojada compra daquele tempo, descansava ansioso à porta do casão onde seria adormecida toda a semente, livre e sã, que em dias eternos seria joeirada por um grupo de homens desejosos de acabar a empreitada.
Um dia, calor aceso como se fosse labareda, seguimos pela estrada velha e esburacada para um lugar que não me lembro bem, entre as Pereiras e os Merindeiros. Seria quase hora de comer, porque num pequeno tacho azul, pintalgado de branco, as sopas afogadas em caldo de grãos esperavam pela fome justa do “chefe” da Laverda. Na galera puxada pelo Ebro, entretidos em brincadeiras sem nome, eu com o Rosinha e o Idalberto começámos a espreitar a hora de almoço. E comemos as sopas! Em segredo e saboreando aquele caldo de campo, que é incomparável e aquece a alma de quem o percebe desde o dia em que nasceu!
Nem sei como ripostámos ao embaraço quando os homens nos olharam com ar reprovador e atitude zangada. Nem me lembro como a minha mãe reagiu perante tanta insurreição. O que terá o homem almoçado nesse dia? Que palavras tortas terá dito sobre a porra dos moços, que não largavam o calor e as ceifas e lhe comeram a merecida ceia?
Ainda hoje, recordo o ar bonacheirão e alegre do Sebastião do Ulmo a gozar com a nossa desfaçatez. Quantos anos o escutei, envergonhado, a rir-se daquela peripécia infantil. Mas, nessa sucessão de memórias, desfruto sobretudo da alegria franca do Luís Fernando (até certa idade… o Nando, o “meu” Nando!), divertido num sorriso de gargalhadas tão genuínas, como se fosse ele próprio a ter comido as sopas às escondidas.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

legalidade e imoralidade




Como o Orçamento de Estado de 2011 prevê um forte agravamento fiscal, algumas empresas portuguesas decidiram antecipar o pagamento de dividendos aos seus accionistas e, desse modo, evitar o pagamento de impostos. Entre essas empresas, destacam-se, por exemplo, a Portugal Telecom (PT). Em primeiro lugar, importa reconhecer que esse tipo de actuação é completamente legal! Contudo, num país à beira da bancarrota, é inacreditável que seja possível recorrer a esta imoralidade para evitar o pagamento de impostos.
Mas foi exactamente isso que aconteceu! E com contornos bastante piores do que seria possível prever. Primeiro, o chefe do Governo disse alto e bom som, na TVI, que o procedimento da PT é "imoral". Contudo, depois disso, na Assembleia da República, o PS pôs-se ao lado do PSD e do CDS para chumbar um projecto de lei do PCP que impedia esse expediente da telefónica portuguesa.
Repetimos: a PT pode fazer o que fez porque a lei lho permite! Mas, à luz do quadro que o país vive e da responsabilidade social que aquela empresa deveria ter, agir deste modo é um exemplo lastimável de oportunismo e falta de senso.
No meio disto tudo, Sócrates voltou a dar o flanco e obrigou o PS a seguir o mesmo caminho ao lado da direita. Com isso, esmagou por completo a matriz ideológica do partido e todos aqueles que (como Inês de Medeiros, António José Seguro, Eduardo Cabrita, Ana Paula Vitorino ou Miguel Laranjeiro), apesar de não terem mostrado verdadeira coragem para votar contra, souberam, pelo menos, levantar a voz e manifestar desagrado com esta falta de coragem inadmissível. Assim se identificam, mesmo em tempo de grave crise, as razões históricas porque este país está à beira da desgraça.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

kiko


Tenho um amigo que não conheceu o pai mas teve uma mãe com um coração e uma alma enormes. Ao aventurar-se para França, por caminhos incertos e um propósito por decidir, o pai do meu amigo foi atrás do destino e a má notícia da sua morte inundou de desespero a vida daquela família.
O Francisco chegou assim ao mundo, numa terra pobre e numa casa com três irmãos que tinham chegado primeiro. Uma carga de trabalhos para a mãe Maria José, nesses tempos de ditadura e grande escassez.
Era preciso começar a ajudar! Talvez com uns 8 ou 10 anos, o menino partilhava a escola com os mandados e as diabruras. Seguia a mãe pelas ruas empedradas da vila, atrás de um carrinho de mão feito em madeira, para vender linhas, elásticos e outras coisas de retrosaria. Ajudava na limpeza da taberna do tio e tocava o sino da igreja! Depois do 25 de Abril, distribuía o “Avante” e apregoava os comícios daquele tempo.
No largo grande, o seu tio Mariano Chaves tinha uma espécie de agência da rodoviária. Uma azáfama! Era ali o “coração logístico” de toda a vila: chegavam camionetas da carreira da Eva, com pesadas caixas para os “moços da loja”, para o primo Candeias, para a menina Isilda.
Quando havia encomendas para distribuir e era preciso tocar o sino na torre da igreja grande, assinalando ao meio-dia o aniversário de uma morte, Francisco contava com a ligeireza do amigo “Gita”: eterno amante de motorizadas rápidas, que tocava o sino e recebia uma parte da “melhadura” a que Francisco tinha direito. Verdadeiro “outsourcing” em micro escala rural!
Agir assim, deixava-lhe tempo para ir de mercearia em mercearia, receber gelados, chupa-chupas e gorjetas. Quem ficava mais perto da venda do tio Mariano, eram os manos Revez de Freitas. Para a vila inteira… “os moços da loja”! Luís e Hermínio nunca casaram e vendiam de tudo. Entrava-se pela porta e não havia campo para estar ao balcão: fazendas, pás e picaretas, ocas de mil cores, terrinas e faqueiros, piões e carnes frescas. Um autêntico caleidoscópio que se estendia aos aposentos interiores, com todos os recantos da casa cheios por uma quinquilharia qualquer.
Francisco deixava muitos frangos naquela loja! E preferia sempre que fosse o Hermínio a receber a encomenda: era mais generoso e encolhia-se menos no agradecimento! O Luizinho, único daquela família que ainda sobrevive, regateava sempre a melhadura! Por isso, o moço das encomendas espreitava primeiro para ver quem estava atrás do balcão. E assumia o seu próprio semáforo: Hermínio era luz verde; Luizinho era luz vermelha!
Quando Francisco estava a caminho da puberdade, a mãe encarregou o mano do Chico Mira de lhe construir um carrinho novo. O moço já tinha idade e talento para agir por conta própria! A obra decorreu a preceito, sem sobressaltos nem medidas. O carpinteiro improvisado aprimorou-se e o carrinho ficou muito grande e bonito. Mas, quando chegou a hora de Francisco o receber… não cabia na estreita porta da oficina! Que fazer agora? Que resposta dar perante um carrinho maior do que a porta e ao seu vendedor nato, ansioso por fazer-se às ruas longas da vila?
O mano do Chico Mira traçou um plano! O carrinho saiu pelo ar, depois de tiradas as telhas vãs que cobriam o céu daquela oficina de meados de Setenta. Aquele carpinteiro de vila alentejana era um primor de imaginação. Um criativo em estado puro!
Naquela altura, esse homem engenhoso tinha no quintal dois burros que eram o seu maior enlevo. Dado à brincadeira, montava o Francisco e o Vasco nos animais, há muito baptizados com graça. Um era o “Mercedes” e o outro era “Volvo”! Depois, numa corrida alegre, o marceneiro incitava os dois bichos numa correria até ao Moinho Ferreiro, um pego largo na ribeira de Terges, com lodo e rochas e buínho, onde todos se banhavam como se estivessem numa piscina olímpica.
Nas ruas da vila, Francisco apresentava a arte de saber vender. Os ares da revolução dos cravos perfumavam uma liberdade que também se espelhava no comércio. Os seus manos já tinham partido para outras paragens e ele ficara com a mãe, agarrado ao negócio dos trapos.
Em 1979, comprou um triciclo a motor que transformou em viatura ambulante com outros horizontes. A caixa verde escura, feita em platex, tinha inscrito em letras de forma as iniciais do seu nome: FCC (Francisco Costa Chaves)! E tinha uma pequena cabine dianteira, para o aconchegar nos dias chuvosos e dos calores infernais.
Foi numa dessas jornadas de aventura comercial que Francisco se cruzou com o vizinho Artur da Costa. Um homem franco e bom, ora ingénuo ora tempestuoso, que vendia peixe por montes e aldeias vizinhas, numa motorizada onde instalara um grande cesto de verga. Nesse tempo, a imitação moderna dos velhos “alfores” asnáticos.
Nos caixotes de madeira tosca, tapados com uma serapilheira, seguiam os carapaus e as sardinhas que ajudavam o ti’Artur a governar a vida. Naquela manhã, em moderada correria para os lados do monte da Madruga, a velha Zundapp traiu-o e o peixe desse dia destrambelhou-se por terra, formando um tapete do tamanho do desconsolo do peixeiro.
No trilho do homem, Francisco chegou depressa ao sítio do percalço e ele próprio se desconsolou com a imensa amargura incontida do vizinho Artur: “Primo Chico… parece que estão vivinhos!”, disse desanimado o homem que, por essa altura, já era o mais divertido contínuo da sociedade recreativa.
Foi nesta vida de sucessivos episódios e graciosas aparições que Francisco ganhou calos. Uns dias vendendo enxovais completos para moças casadoiras das aldeias da vizinhança. Outros dias penando, noite fora, num casão de Albernoa, encharcado até aos ossos depois de a corrente do triciclo ter ficado esfrangalhada. Telefone? Telemóvel? Há apenas 30 anos, mas parece que há 500!
Tempo que chegou para amassar com suor os dias de sortilégio e desgraça. Tempo que chegou para fazer saltar a roupa de um apertado carrinho de madeira para o triciclo e daí para as lojas amplas e esmeradas. Tempo que sobrou para caldear os sonhos e a persistência.
Esta é uma história incompleta de desventuras e crença, que se adoçou com o abrigo eterno da mãe Maria José, sua referência sentimental e guia para todos os momentos de uma vida com muito que contar.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

aeroporto é um queijo



O aparente desconhecimento de algumas matérias relacionadas com o Aeroporto de Beja levou o Tribunal de Contas a cometer alguns erros grosseiros no seu relatório. E isso, posto na mesa dos mais influentes jornais do país, acentuou o descrédito sobre a infra-estrutura, como muito bem assinalou o presidente da EDAB. Importa, contudo, não deixar cair em “saco-roto” alguns reparos que são muito pertinentes. Entre todos, destacamos o grosseiro desfasamento entre as construções do aeroporto e do futuro IP8. É realmente extraordinário que não tenha havido capacidade para concertar as duas obras e concluí-las quase em simultâneo. Mas este é um modo de actuar muito português, que jamais será resolvido!
Tirando esse aspecto, se é possível, por estes dias, remar contra a maré negativa a que o Tribunal de Contas deu tanta força, voltamos a assinalar aqui que o aeroporto de Beja nunca será um intenso ponto de chegadas e partidas. Este aeroporto é pequeno, terá tráfego reduzido e não viverá apenas disso! Peguemos nesta imagem: o aeroporto é um “queijo” partido em várias fatias e, cada uma delas, será ocupada por uma área de negócio: voos low-cost, voos charter, mercadorias, oficinas de manutenção aeronáutica, escola de pilotagem, estacionamento de aviões.
É a soma destas actividades que permitirá a viabilidade da infra-estrutura e assegurará uma dinâmica nova à cidade de Beja e à região. Com elas chegarão quadros qualificados, pessoas, novos serviços e outra dinâmica social.
Contrariando aquilo que já aqui dissemos, com a ANA talvez seja complicado atingir estes objectivos. E, por isso, se não tem autoridade para impor uma agenda à empresa aeroportuária nacional, exige-se que o Governo crie condições para que seja a EDAB a tratar do assunto, depois de competentemente reestruturada.

[Correio Alentejo . 04.12.2010]