sexta-feira, 5 de novembro de 2010

uma tarde infinita


São três da tarde e o calor infernal de Agosto mal deixa fazer sombras na calçada da rua larga. Vigilante, a torre da igreja assoma-se austera para quem arrisque espreitar os jardins velhos. As amoreiras já deram todas as amoras às mãos dos moços da vila inteira. O jogo da falha acabou com a Primavera e a taberna do ti’Elisiário tem as portas fechadas. Daí a seis horas, há-de ser posta uma mesa com vinho e petisco no passeio, ao fresco, para que a noite seja gozada depois de um dia inteiro de ceifa e suor.
Espreito pela fresta quase invisível da persiana branca. Gosto daquela persiana incrustada na parede, sem lata por cima para acolher o rolo quando a gente a sobe ao fim da tarde. Sempre achei que o meu pai foi arrojado ao escolher persianas assim!
Pelo buraco ténue, não vejo os homens. Por que tardarão tanto? Fujo pelo corredor de mosaicos que eu acho muito modernos e ligo um telefonia com cheiro a alemanha que a minha tia me trouxe pelo São Pedro, quando chegou para as férias com os meus primos preferidos. A telefonia mal se ouve. Tento fixá-la no “fm estéreo” mas o trabalho é impossível. Não desisto e sigo o caminho da onda média: “A corrida segue num ritmo lento, quase sufocado pelo calor que aperta Portugal. Lá à frente, subindo a serra e bebendo o doce sabor do descuido do pelotão, Zeferino corre muito adiantado. Serão mais de nove minutos!...”
Escuto o relato afogado em emoções que não consigo distinguir. Mas abro muito os olhos, admirado com tanto descuido do pelotão autoritário, sempre tão mandão e decisor.
Volto a fugir pelo corredor até à porta da rua. São duas portas, muito bem envernizadas e bonitas. Gosto tanto daquelas portas. Porque são duas e fogem à nova mania de fazer uma porta única. Inteiriça, rectangular e sempre solitária. Pelo menos aquelas duas sempre se aconchegam e confidenciam segredos uma com a outra, na sua eterna vigilância.
Abrir a porta… para já não pode ser. Está calor, o Verão obriga a honrar um código de resistência e aconchego à sombra dos forros a direito com tábuas muito bem pintadas. Volto a espreitar a persiana e, finalmente, vejo os homens ali, sentados no banco onde todos os dias contam tantas histórias e segredos. Ensaio um sorriso.
Solto pelo corredor um grito de liberdade: “Os vizinhos já estão no banco. Posso ir ali ouvir a Volta?” Recebo o assentimento com tanta alegria que mal sei andar na rua quando atravesso a calçada.
Digo “boa tarde” com uma voz grossa que me orgulha. Coisa de criança alentejana com pretensão a imitar os homens que admira. Pergunto como se não soubesse: “Atão, como é que está a volta?” O mais velho assoma-se por cima do cajado, mas não consegue ter precisão para dar a resposta certa. Um dos manos encolhe os ombros no meio do olhar terno, guardando para o barbeiro a resposta de todos os dias: “Ainda isto vai no princípio e já anda aí um gajo novo a querer pedir meças.”
Na ponta do banco, tão comprido e improvisado, o pequeno rádio solta a voz composta do locutor. Seria o Marques Vidal? A todo o momento, a emissão “é interrompida” para uma “ligação directa à estrada” e à terrível “frigideira alentejana”. Dentro do nosso silêncio, o homem mais velho conta uma história sobre aquele dia distante em que viu os ciclistas passarem ao lado da vila. Eu, com as palmas das mãos apoiadas no banco, por baixo das pernas e metidas para dentro, só sei sorrir com os olhos, desejando que a corrida demore a tarde toda…

1 comentários:

pulanito disse...

A poesia não passa da memória feita palavras encarreiradas, como as rodas das bicicletas que povoam o pelotão. Na minha lembrança infantil também pedalam homens feitos rimas que sulcam as estradas como quem sulca peitos por desbravar...

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