sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

as sopas do monte coito



Quando eu era pequenino, o Luís Fernando passeava-me numa Sachs V5 que já não me lembro a cor. Eu queria apenas andar, ser livre e ir descobrir a vila. Ele, talvez à espera de ser homem maduro, calcorreava a avenida, para baixo e para cima, até a mulher da sua vida espreitar na janela numa casa por cima da fábrica para onde se mudaram há pouco tempo.
Naquela altura, registo aquela harmonia que ele tinha com todas as crianças. Mas eu, orgulhoso, assumia um egoísmo infantil e queria-o apenas meu amigo. Antes de virar de 70 para 80, mudou-se para uma casa ao lado da minha quando ainda esperava pela chegada da Sofia. Dava passos na lavoura, em sementeiras eternas e debulhas feitas de uma camaradagem que nunca mais consegui distinguir noutros pontos.
O Sebastião do monte do Ulmo chegava cedo num Toyota Corolla encarnado esmorecido. Coisa que resolveu quando decidiu pintá-lo de novo! À porta do casão, o mano do Chico Brissos já estava pronto para pegar na corajosa Laverda que iria rasgar as searas torradas, cor de ouro, nas encostas suaves do Monte Coito. O novo Ebro azul-escuro, arrojada compra daquele tempo, descansava ansioso à porta do casão onde seria adormecida toda a semente, livre e sã, que em dias eternos seria joeirada por um grupo de homens desejosos de acabar a empreitada.
Um dia, calor aceso como se fosse labareda, seguimos pela estrada velha e esburacada para um lugar que não me lembro bem, entre as Pereiras e os Merindeiros. Seria quase hora de comer, porque num pequeno tacho azul, pintalgado de branco, as sopas afogadas em caldo de grãos esperavam pela fome justa do “chefe” da Laverda. Na galera puxada pelo Ebro, entretidos em brincadeiras sem nome, eu com o Rosinha e o Idalberto começámos a espreitar a hora de almoço. E comemos as sopas! Em segredo e saboreando aquele caldo de campo, que é incomparável e aquece a alma de quem o percebe desde o dia em que nasceu!
Nem sei como ripostámos ao embaraço quando os homens nos olharam com ar reprovador e atitude zangada. Nem me lembro como a minha mãe reagiu perante tanta insurreição. O que terá o homem almoçado nesse dia? Que palavras tortas terá dito sobre a porra dos moços, que não largavam o calor e as ceifas e lhe comeram a merecida ceia?
Ainda hoje, recordo o ar bonacheirão e alegre do Sebastião do Ulmo a gozar com a nossa desfaçatez. Quantos anos o escutei, envergonhado, a rir-se daquela peripécia infantil. Mas, nessa sucessão de memórias, desfruto sobretudo da alegria franca do Luís Fernando (até certa idade… o Nando, o “meu” Nando!), divertido num sorriso de gargalhadas tão genuínas, como se fosse ele próprio a ter comido as sopas às escondidas.

2 comentários:

joao feio disse...

essa maldita v5 fez-me vir a pé de Castro até Entradas (Castro não, meio caminho de S.marcos)

Manuel António Domingos disse...

Como coisas tão simples e pequeninas podem ter um significado enorme na eternidade da memória!

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