quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

mestre zé adelino


Tinha 14 anos e o pai quis que fosse barbeiro. A ajudar à sina, o seu tio Álvaro Freire fez gosto em ensinar-lhe o ofício. Assim foi! José Adelino perdeu os tempos da mocidade em troca de uma profissão para o resto da vida. Com uma bata muito branca, depressa aprendeu as artes do cortar o cabelo e a barba. Um dia, prestes a partir, o tio chamou-o ao leito da doença e pediu-lhe para que ficasse dono da barbearia. Não houve maneira de dizer não!
Estavam em 1937 e havia ecos das bombas de Espanha. Os tempos eram muito diferentes em Castro Verde e em todo o lado. Barba e cabelo custavam 18 tostões e a cadeira não chegava para tantos fregueses. “Trabalhava das sete da manhã à meia-noite. Sempre sem parar. Sempre com gente à espera”.
O tempo era um caminho estreito. Os ordenados fracos e o trabalho escasso. Salazar crescia no poder e dava força a uma ditadura implacável, obrigando o povo a viver numa terrível miséria.
Quando o mestre Zé Adelino decidiu aumentar o valor do trabalho para dois escudos (hoje um cêntimo!), os protestos emergiram sem piedade – “Não tem consciência nenhuma”, praguejavam entre dentes os clientes da vila inteira.
Em 1956, com quase 20 anos de ofício, a barbearia mudou para outro ponto da Rua Nova, mesmo ao lado da papelaria do Galrito, perto do Nicola e a dois passos da praça maior. O negócio continuava a ser remediado, apesar da concorrência. A mulher do Zé Adelino chegava a lavar 100 toalhas por semana, para ele dar uso na barbearia. Era tanta a clientela que, nesse tempo, Castro tinha nove barbearias de portas abertas.
Passaram-se os anos. Para ajudar à arte do corte e de escanhoar, o barbeiro começou a ajeitar-se com os relógios. Sem fregueses nas cadeiras, sentava-se na pequena mesa encostada à estreita janela virada para a grande loja do tio Albano. A perspicácia ajudava-o a anunciar pequenos e sucessivos milagres. Mas um dia, por causa dos olhos cansados, os médicos proibiram-no de concertar as misteriosas máquinas do tempo.
A mesa dos relógios passou a ser um tabuleiro para eternos jogos de sueca, com os mesmos velhos de sempre, enredados entre calendários de mulheres com mamas generosas e edições intermináveis do “Correio da Manhã”. Gente de Castro, contadora de histórias e feitos e mágoas. Até de segredos!
Nisso da conversa, o mestre Zé Adelino era um criador notável. Sempre a soltar uma frase afiada para lembrar um episódio ou um feito. Sempre pronto para resgatar da sua imaginação as frescas pinturas que ninguém mais havia visto.
Com a barbearia e a vida em contra-relógio, Zé Adelino lamentava com nostalgia a distância dos dias completos. Esse tempo em que os jovens “ainda não usavam o cabelo grande para imitar as mulheres” e a moda das gillettes não tinha chegado a casa de ninguém.
Inconformado e sem a ilusão dos relógios, mesmo perto dos 80, o mestre ainda se divertia como alquimista de surpreendentes “mésinhas” com ervas do campo. Ficou célebre a que preparou para a dor dos dentes. Um milagre inventado que sabia negociar com habilidade prodigiosa: “Deu três anos de trabalho e de estudo. Não imagina como é eficaz! Quer levar?”, desafiava com aquele olhar maroto e franco.
Nesse tempo em que acabou o século, na rua que sobe houve muitos que começaram a descer para a eternidade. O mestre Zé Adelino também abalou um dia! E a barbearia da minha infância fechou as portas para sempre.

4 comentários:

Manuel António Domingos disse...

Muito bem, mais uma nostalgia, das muitas de que se compõe a nossa vida.
Corrija lá o texto, onde diz; Dois escudos são hoje quatro cêntimos, ponha, um cêntimo, porque assim é que fica correcto.

António José Brito disse...

mad: sempre com as contas debaixo de olho ;))

Vitor Encarnação disse...

Enquanto esperava para cortar o cabelo eram as conversas dos homens que me fascinavam. Conversavam sobre caça, vinho e mulheres. A tesoura cortava o ar e eu, nos meus devaneios de adolescente ainda sem prenúncios de barba, ansiava por qualquer uma das três coisas.

Vítor Encarnação

Anónimo disse...

enquanto estive em castro Verde era la que o meu pai me mandava cortar o cabelo

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