sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

kiko


Tenho um amigo que não conheceu o pai mas teve uma mãe com um coração e uma alma enormes. Ao aventurar-se para França, por caminhos incertos e um propósito por decidir, o pai do meu amigo foi atrás do destino e a má notícia da sua morte inundou de desespero a vida daquela família.
O Francisco chegou assim ao mundo, numa terra pobre e numa casa com três irmãos que tinham chegado primeiro. Uma carga de trabalhos para a mãe Maria José, nesses tempos de ditadura e grande escassez.
Era preciso começar a ajudar! Talvez com uns 8 ou 10 anos, o menino partilhava a escola com os mandados e as diabruras. Seguia a mãe pelas ruas empedradas da vila, atrás de um carrinho de mão feito em madeira, para vender linhas, elásticos e outras coisas de retrosaria. Ajudava na limpeza da taberna do tio e tocava o sino da igreja! Depois do 25 de Abril, distribuía o “Avante” e apregoava os comícios daquele tempo.
No largo grande, o seu tio Mariano Chaves tinha uma espécie de agência da rodoviária. Uma azáfama! Era ali o “coração logístico” de toda a vila: chegavam camionetas da carreira da Eva, com pesadas caixas para os “moços da loja”, para o primo Candeias, para a menina Isilda.
Quando havia encomendas para distribuir e era preciso tocar o sino na torre da igreja grande, assinalando ao meio-dia o aniversário de uma morte, Francisco contava com a ligeireza do amigo “Gita”: eterno amante de motorizadas rápidas, que tocava o sino e recebia uma parte da “melhadura” a que Francisco tinha direito. Verdadeiro “outsourcing” em micro escala rural!
Agir assim, deixava-lhe tempo para ir de mercearia em mercearia, receber gelados, chupa-chupas e gorjetas. Quem ficava mais perto da venda do tio Mariano, eram os manos Revez de Freitas. Para a vila inteira… “os moços da loja”! Luís e Hermínio nunca casaram e vendiam de tudo. Entrava-se pela porta e não havia campo para estar ao balcão: fazendas, pás e picaretas, ocas de mil cores, terrinas e faqueiros, piões e carnes frescas. Um autêntico caleidoscópio que se estendia aos aposentos interiores, com todos os recantos da casa cheios por uma quinquilharia qualquer.
Francisco deixava muitos frangos naquela loja! E preferia sempre que fosse o Hermínio a receber a encomenda: era mais generoso e encolhia-se menos no agradecimento! O Luizinho, único daquela família que ainda sobrevive, regateava sempre a melhadura! Por isso, o moço das encomendas espreitava primeiro para ver quem estava atrás do balcão. E assumia o seu próprio semáforo: Hermínio era luz verde; Luizinho era luz vermelha!
Quando Francisco estava a caminho da puberdade, a mãe encarregou o mano do Chico Mira de lhe construir um carrinho novo. O moço já tinha idade e talento para agir por conta própria! A obra decorreu a preceito, sem sobressaltos nem medidas. O carpinteiro improvisado aprimorou-se e o carrinho ficou muito grande e bonito. Mas, quando chegou a hora de Francisco o receber… não cabia na estreita porta da oficina! Que fazer agora? Que resposta dar perante um carrinho maior do que a porta e ao seu vendedor nato, ansioso por fazer-se às ruas longas da vila?
O mano do Chico Mira traçou um plano! O carrinho saiu pelo ar, depois de tiradas as telhas vãs que cobriam o céu daquela oficina de meados de Setenta. Aquele carpinteiro de vila alentejana era um primor de imaginação. Um criativo em estado puro!
Naquela altura, esse homem engenhoso tinha no quintal dois burros que eram o seu maior enlevo. Dado à brincadeira, montava o Francisco e o Vasco nos animais, há muito baptizados com graça. Um era o “Mercedes” e o outro era “Volvo”! Depois, numa corrida alegre, o marceneiro incitava os dois bichos numa correria até ao Moinho Ferreiro, um pego largo na ribeira de Terges, com lodo e rochas e buínho, onde todos se banhavam como se estivessem numa piscina olímpica.
Nas ruas da vila, Francisco apresentava a arte de saber vender. Os ares da revolução dos cravos perfumavam uma liberdade que também se espelhava no comércio. Os seus manos já tinham partido para outras paragens e ele ficara com a mãe, agarrado ao negócio dos trapos.
Em 1979, comprou um triciclo a motor que transformou em viatura ambulante com outros horizontes. A caixa verde escura, feita em platex, tinha inscrito em letras de forma as iniciais do seu nome: FCC (Francisco Costa Chaves)! E tinha uma pequena cabine dianteira, para o aconchegar nos dias chuvosos e dos calores infernais.
Foi numa dessas jornadas de aventura comercial que Francisco se cruzou com o vizinho Artur da Costa. Um homem franco e bom, ora ingénuo ora tempestuoso, que vendia peixe por montes e aldeias vizinhas, numa motorizada onde instalara um grande cesto de verga. Nesse tempo, a imitação moderna dos velhos “alfores” asnáticos.
Nos caixotes de madeira tosca, tapados com uma serapilheira, seguiam os carapaus e as sardinhas que ajudavam o ti’Artur a governar a vida. Naquela manhã, em moderada correria para os lados do monte da Madruga, a velha Zundapp traiu-o e o peixe desse dia destrambelhou-se por terra, formando um tapete do tamanho do desconsolo do peixeiro.
No trilho do homem, Francisco chegou depressa ao sítio do percalço e ele próprio se desconsolou com a imensa amargura incontida do vizinho Artur: “Primo Chico… parece que estão vivinhos!”, disse desanimado o homem que, por essa altura, já era o mais divertido contínuo da sociedade recreativa.
Foi nesta vida de sucessivos episódios e graciosas aparições que Francisco ganhou calos. Uns dias vendendo enxovais completos para moças casadoiras das aldeias da vizinhança. Outros dias penando, noite fora, num casão de Albernoa, encharcado até aos ossos depois de a corrente do triciclo ter ficado esfrangalhada. Telefone? Telemóvel? Há apenas 30 anos, mas parece que há 500!
Tempo que chegou para amassar com suor os dias de sortilégio e desgraça. Tempo que chegou para fazer saltar a roupa de um apertado carrinho de madeira para o triciclo e daí para as lojas amplas e esmeradas. Tempo que sobrou para caldear os sonhos e a persistência.
Esta é uma história incompleta de desventuras e crença, que se adoçou com o abrigo eterno da mãe Maria José, sua referência sentimental e guia para todos os momentos de uma vida com muito que contar.

3 comentários:

Anónimo disse...

Uma bela homenagem à grande e afectiva mulher que foi Maria José Costa.

Anónimo disse...

Maria José Costa o pilar de uma vida, e um grande privilégio e referencia para as pessoas que puderam partilhar a vida com ela

pulanito disse...

As vezes que eu já ouvi e vivi esta epopeia. Ao Francisco e à sua falecida mãe, fica aqui, pela pena do AJB a justa homenagem ao verdadeiro sef made man, de quem tenho o privilégio de ser amigo.

Enviar um comentário