quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

que fazer com as palavras?


As crónicas do Vítor Encarnação são crónicas belas e simples, porque são genuínas e falam de coisas que tocamos e que nos tocam todos os dias. São crónicas cristalinas e transparentes e às vezes muito doces, porque descrevem o que pensamos e não sabemos dizer, ou não queremos porque não temos coragem. São palavras bordadas, às vezes com frágeis linhas da renda maternal, outras vezes com a dolorosa marca do ferro em brasa, mas quase sempre com a mesma leveza da água límpida que nos inunda os olhos. E são terrivelmente inquietantes, e raras, porque não falam das coisas comuns dos telejornais nem dos lugares mil vezes repisados pelas bocas gastas de quem se repete sem ouvir o eco dos seus próprios verbos. São apenas palavras profundas, que rimam com tempo, memória e vida, e se entrelaçam num voo pensado, riscando o céu num frágil e gracioso bailado, que imita os pássaros da Primavera quando se soltam pelos telhados e brincam livres nos mais altos ramos de laranjeiras prenhas com bolas de intenso fogo, que se esmagam contra o infinito céu azul onde todas os vocábulos se abrigam.
Aquelas expressões sabem seguir o caminho recurvado das vidas, esculpir os dias tristes de chuva e massajar a lembrança dilacerada por uma perda irrevogável. São doces porque não vilipendiam a carne e sabem glorificar o amor, quando é verdadeiro e elementar e se traduz numa madrugada de luzes riscadas na noite leve e escura e misteriosa.
As palavras do Vítor Encarnação são frágeis quando edificam homens abandonados e distantes do lugar que prometeram imaginar. Ou quando nos transmitem, com desassossego, que cada tempo desses homens consumidos pela voragem das letras calejadas, será também uma cronologia nossa, porque o grande relógio universal, incomensurável e frio, vai deixar-nos em apeadeiros onde nunca sonhámos estar. E esse é o ferro em brasa que nos fere a carne e nos desvenda com estranha limpidez o lugar onde não queremos chegar.
E tudo isto é inquietante e raro, porque é na sucessão de linhas, harmoniosamente aconchegadas, que afinal descobrimos a nossa história e identificamos os lugares da ingenuidade e do sonho, do amor e da alma, da saudade e do destino. E do tempo… de todo o tempo que molda a nossa vida, às vezes sem percebermos que a existência é apenas um risco desenhado na areia, que num instante se apaga sem sequer deixar um leve murmúrio.

3 comentários:

João Espinho disse...

Muito bem.

pulanito disse...

Amigo, são sábias e certeiras as tuas palavras com as quais comungo na sua essência. O Vitor é um escultor de palavras, um filigranista do verbo, em suma; um poeta de corpo inteiro, e eu tenho particular prazer em beber da sua arte como se de uma fonte de água cristalina se tratasse.
Parabéns pelo texto e pela oportunidade.

Anónimo disse...

Parabéns pela síntese!
MLSC

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